CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PARADIGMAS
COMO CRITÉRIOS DE VERDADE
O texto que se segue é cópia do primeiro capítulo do meu livro intitulado “A Revolução da Medicina“, onde começamos com a definição de Paradigma como “critérios de verdade” e o estudo da Epistemologia. Por questões legais, a utilização por terceiros de partes ou do texto em sua íntegra deve citar sempre sua fonte.
O termo epistemologia vem do grego: “epistéme” – ciência, e “logos” – palavra, estudo, tratado; ou seja: “o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objetivo delas”.1
Sabemos que o longo e obscuro período da Idade Média desdobrou-se no Ocidente embasado nos conceitos da teologia e da filosofia impostas pela Igreja Católica. Com o advento da Revolução Industrial o mundo europeu transformou-se profundamente, remodelando a vida dos seus integrantes pela conquista dos triunfos tecnológicos conhecidos. Devido ao poderoso efeito do pensamento racional e ao conforto advindo da mecanização do trabalho, poucos ousaram ou sequer pensaram em duvidar da autoridade da ciência humana, como outrora ocorrera com o poder inquestionável da onisciência teológica dos religiosos.
Bachelard descreve bem o pensamento científico vigente há um século atrás:
No fim do século passado acreditava-se ainda no caráter empiricamente unificado do nosso conhecimento do real. [….] a ciência do século passado oferecia-se como um conhecimento homogêneo, como a ciência do nosso próprio mundo, no contato da experiência quotidiana, organizada por uma razão universal e estável, com a sanção final do nosso interesse comum. O sábio [….] vivia a nossa realidade, manejava os nossos objetos, [….] seguia a nossa geometria e a nossa mecânica. A ciência e a filosofia falavam a mesma linguagem. [….] Ver para compreender, tal é o ideal desta estranha pedagogia.2
Praticamente todas as escolas do pensamento científico atual tendem a aceitar a história da ciência como um desenvolvimento linear, com gradual e constante acúmulo de conhecimentos sobre os fenômenos naturais, culminando sempre com a somatória dos dados e a conclusão momentânea da resultante obtida.
Segundo Grof, “cada período da história das idéias e métodos científicos é reconhecido como um passo lógico no sentido de uma aproximação cada vez mais apurada de uma descrição do universo, como sendo a última verdade a respeito dele”.3
Entretanto, os recentes questionamentos epistemológicos de grandes cientistas que serão aqui citados mostram que a história da ciência está longe da linearidade, e que apesar de toda sua aparente evolução, ela não descreve a realidade de forma acumulativa cada vez mais profunda e verdadeira. Inclusive a própria noção da realidade está em julgamento! Grof escreve que os cientistas não lidam com a verdade (no sentido de correspondência exata entre a descrição e os fenômenos descritos) – eles lidam com descrições limitadas e aproximadas da realidade.4
Foi o físico e historiador da ciência Thomas Kuhn quem primeiro percebeu estes “critérios de verdade”, definindo as diferenças fundamentais entre as ciências naturais e sociais. Ele observou que os estudiosos da astronomia, física e química, por exemplo, apresentavam poucas controvérsias acerca dos seus problemas fundamentais, diferentemente do que ocorria com os cientistas sociais como os historiadores, antropólogos e sociólogos. A constatação dessa discrepância conduziu-o à publicação de um trabalho pioneiro, intitulado A Estrutura das Revoluções Científicas.
Estes estudos mostraram que a ciência não é um processo uniforme e gradual de acúmulo de dados e uma formulação cada vez mais perfeita de teorias. Ao contrário, identifica uma natureza histórica cíclica, com estágios e características dinâmicas, específicas e interrelacionadas, onde o conhecimento é obtido de forma multifatorial e não regular.
Na introdução do seu livro, Kuhn escreve: “Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina”.5
Popper, por sua vez, percebe e revela a razão destes conflitos científicos nas ciências sociais:
A Física se vale do método experimental, isto é, introduz controles artificiais, provoca isolamento artificial e, assim, assegura a reprodução de condições similares à que deseja estudar e garante a conseqüente produção de certos efeitos. Esse método se baseia, claramente, na idéia de que, onde haja condições semelhantes, coisas semelhantes ocorrerão. O historicista afirma que este método não é aplicável em Sociologia. E, ainda que fosse aplicável, não seria útil, pois, como condições similares só se manifestam dentro dos limites de um mesmo período, o resultado experimental seria sempre de alcance muito limitado. Além disso, a artificialidade do isolamento eliminaria exatamente os fatores que em Sociologia são de maior relevo. 6
As observações de Kuhn e de Popper trazem consigo a noção de paradigma, que pode, segundo Grof, ser definido como “uma constelação de crenças, valores e técnicas compartilhadas pelos membros de uma determinada comunidade científica”.7 Este termo já era conhecido e utilizado pelos gregos antigos; Platão o usava como sinônimo de “modelo”, e Aristóteles como de “exemplo”. Para Platão, paradigma era o mundo dos seres eternos, do qual o mundo sensível era só uma imagem: “Ora, se o Cosmo é belo e se o demiurgo é bom, é claro que ele mira o modelo eterno”.8 Para Aristóteles, o paradigma era uma indução aparente ou retórica, que partia de um enunciado geral no qual a primeira premissa era generalizada. Já na Lógica medieval esta palavra foi usada para designar uma generalização indutiva que partia do particular e terminava no particular, omitindo a premissa universal.
O termo “paradigma” engloba, assim, todos os processos aceitos na prática científica real incluindo as leis, teorias, aplicações e instrumentações, proporcionando assim modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. Esse comprometimento coletivo e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada.
Kuhn percebeu que o termo paradigma é comumente usado no sentido de modelo ou padrão aceitos, mas acredita que “em pouco tempo ficará claro que o sentido de “modelo” ou “padrão” (para a ciência) não é o mesmo que o habitualmente empregado na definição de “paradigma”.9
Isto ocorre porque um paradigma, por definição, deve apresentar um padrão que funcione na representação de outros exemplos, como no caso da conjugação dos verbos na língua portuguesa. Para ele, entretanto, a ciência raramente consegue reproduzir um paradigma, e conclui: “o paradigma é um objeto a ser melhor articulado e precisado em condições novas ou mais rigorosas”.10
A adesão a um paradigma é tão essencial à maioria das ciências quanto a observação dos fenômenos e a experimentação dos mesmos. Sua aceitação plena é condição básica em qualquer pesquisa científica de importância.
No paradigma atual, por exemplo, acredita-se ainda que o todo pode ser compreendido a partir das propriedades específicas de suas partes. Entretanto, questionamentos mais recentes levam a crer que a relação entre as partes e o todo são invertidas; as propriedades das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do todo. Observa-se que a realidade em sua totalidade é tão complexa que a ciência não consegue levar em consideração todas as variáveis envolvidas, impossibilitando-a de conduzir todas as experiências possíveis e realizar todas as manipulações que ocorrem normalmente no mundo fenomênico natural. A ciência deve, portanto, reduzir o problema a uma escala manipulável, e a seleção do que fará parte da pesquisa é conduzida pelo paradigma principal de sua época.
Em condições normais todas as pesquisas científicas estão embasadas nas conclusões do paradigma vigente o qual predetermina um conjunto de crenças, estabelece as hipóteses metafísicas fundamentais e proporciona respostas ou hipóteses preconcebidas acerca da natureza da realidade. Este paradigma tem que ser aceito unanimemente pelos cientistas de uma mesma área, como a verdade sobre a realidade. Kuhn considera que a determinação do fato significativo, a harmonização dos fatos com a teoria e a articulação da teoria esgota os problemas da literatura da ciência normal.11
E é exatamente este “mecanismo de adaptação” científico que impede a possibilidade de novas descobertas e exploração de novas áreas da realidade, porque quando o paradigma é aceito pela comunidade científica, torna-se a forma exclusiva e obrigatória de abordar problemas, e tende a ser confundido e inclusive imposto com uma descrição acurada da realidade. A maioria dos cientistas passa seu tempo perseguindo a ciência normal, que é categórica na pressuposição de que a comunidade científica sabe como é o universo. Esta teoria coletivamente aceita não só define o que o mundo é, como também o que ele não é! Daí a razão pela qual muitos cientistas, inocente ou presunçosamente, declaram não existirem os fenômenos que eles não estudam ou que são rejeitados pelo paradigma vigente.
Kuhn definiu as pesquisas científicas como sendo “um esforço dedicado e extenuante para forçar a natureza em compartimentos conceituais fornecidos pela educação profissional”. Enquanto o paradigma for considerado verdadeiro, somente serão considerados legítimos os problemas que tenham solução viável, enquanto as inovações são suprimidas e consideradas subversivas em relação a seus compromissos básicos. Os paradigmas possuem, assim, um poder de afirmar o que é a realidade e de definir o campo dos problemas que podem ser abordados, determinando seus métodos e estabelecendo os critérios-padrões de solução. Eles adquirem seu status porque são mais bem sucedidos que seus competidores na resolução de alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece como graves; é, em grande parte uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em exemplos selecionados e ainda incompletos.
Para Kuhn 12, “ciência normal” significa toda pesquisa que é realizada com base em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior, e descritas nos livros científicos como conhecimentos clássicos. Assim, a Física de Aristóteles, o Amagesto de Ptolomeu, os Principia e a Optica de Newton, a Eletricidade de Franklin, o Cânon da Medicina de Avicena, a Química de Laivoisier e a Geologia de Lyell, por exemplo, serviram, por algum tempo, para definir os problemas e delimitar métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência. Entretanto, o objetivo dos livros que trazem estes conhecimentos atualmente, para Kuhn, é inevitavelmente persuasivo e pedagógico: “um conhecimento de ciência deles haurido terá tantas possibilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os produziu como a imagem de uma cultura nacional obtida através de um folheto turístico ou um manual de línguas”.13
A ciência normal busca fundamentalmente solucionar quebra-cabeças e seus resultados geralmente são antecipados pelo paradigma vigente. Para ser classificado como quebra-cabeça, não basta ao problema possuir uma solução assegurada, mas também deve obedecer a regras que limitam tanto a natureza das soluções aceitáveis quanto os passos necessários para obtê-las. É por isso que a pesquisa normal parece ser cumulativa: os cientistas selecionam apenas os problemas que podem ser solucionados pelos instrumentos conceituais e tecnológicos já existentes, além de aceitarem apenas os conhecimentos que corroboram seus critérios de verdade. Assim, a ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos, sendo que os que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos.
Novas descobertas só podem surgir se o paradigma atual estiver fracassando em explicar os fenômenos emergentes, gerando o que Kuhn chama de “consciência da anomalia” nos seus pesquisadores.14 Uma teoria realmente nova e radical muda regras básicas, requer revisões e reformulações nos pressupostos fundamentais da teoria anterior, e envolve uma reavaliação dos fatos e observações existentes. Estas são as verdadeiras revoluções científicas, que podem ocorrer em campos limitados ou influenciar várias disciplinas diferentes. São exemplos destas mudanças a transição da física aristotélica para a newtoniana e desta para a de Einstein, assim como os sistemas geocêntricos ptolomaicos para a astronomia de Copérnico e Galileu. O sistema astronômico proposto por Ptolomeu foi admiravelmente bem sucedido na predição da mudança de posição das estrelas e dos planetas; porém, com relação a posições planetárias e aos equinócios, suas predições nunca se ajustaram perfeitamente às observações disponíveis. Tais dificuldades só foram reconhecidas muito lentamente, e só no século XVI Copérnico escreveu no prefácio de De Revolutionibus que “a tradição astronômica que herdara acabara criando tão-somente um monstro”. Nesta época reconheceu-se que o antigo paradigma astronômico estava fracassando, o que foi um pré-requisito para a rejeição do paradigma ptolomaico.
1 CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 308.
2 BACHELARD, G. A epistemologia. Lisboa: Edições 70, 1971, pp. 15 e 16.
3 GROF, S. Além do cérebro. São Paulo: McGraw-Hill, 1987, p. 2.
4 Ibid., p. 4.
5 KUHN, T. A Estrutura das revoluções científicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 19.
6 POPPER, K. A Miséria do Historicismo. 1991, p. 10.
7 GROF, S. Op. cit., p. 2.
8 PLATÃO. Timeu e Crítias ou a Atlântida. São Paulo: Hemus, sd, p. 79.
9 KUHN, T. Op. cit., p. 43.
10 Ibid., p. 44.
11 Ibid., p. 55.
12 Ibid., p. 29.
13 Ibid., p. 19.
14 Ibid., p. 78.
(Continua)
2 comentários
Adorei seu site. Excelente texto.
Com certeza tera minha visita inumeras vezes.
Obrigada.
Autor
Grato, Cristiane, pelo incentivo. Isso me inspira a escrever cada vez mais e melhor!