Todas estas mudanças históricas exigiram a rejeição das teorias científicas amplamente aceitas na época, e uma redefinição drástica dos problemas existentes e importantes para a exploração científica, além de redefinirem o que deveria ser considerado como problema admissível e quais os critérios de solução legítima de um problema.
Kuhn observou que as revoluções científicas são precedidas e anunciadas por um período de caos conceitual no qual a prática normal da ciência se modifica gradualmente em “ciência extraordinária”15. Em algum momento, os equipamentos, as previsões, as observações não poderão se encaixar no sistema de crenças existente. No entanto, estas anomalias não terão força suficiente para questionar a validade dos pressupostos básicos, enquanto o paradigma vigente ainda estiver exercendo seu poder sobre a comunidade científica. Nestes casos, os resultados obtidos serão considerados “má pesquisa”.
Entretanto, se os resultados forem confirmados repetidamente, instaura-se a crise, mas mesmo assim os cientistas não renunciarão ao seu paradigma. Isto porque representaria a falência de suas crenças, o que é inadmissível. A única possibilidade ocorre quando alternativas viáveis apresentem-se disponíveis ao meio científico. Neste momento algumas mentes privilegiadas pelo destemor e pela lucidez concentram sua atenção sobre o problema, tornando os critérios para a pesquisa mais flexíveis. Formulações competitivas proliferam, e suas divergências aumentam gradualmente. O descontentamento com o paradigma comumente aceito aumenta, e os cientistas recorrem à filosofia para debater presunções fundamentais – a ciência, como conhecimento sistemático do universo físico, é bastante recente; anteriormente ela era chamada de filosofia natural, onde ciência e filosofia não estavam separadas.
No período de crise do paradigma ocorrem profundos debates a respeito de problemas, critérios e métodos legítimos; as falhas das velhas regras conduzem a uma intensa busca por novas. Isto foi exemplificado por Kuhn, relembrando o pensamento de Copérnico:
Os astrônomos são tão incoerentes nessas investigações que não conseguem explicar nem mesmo a duração constante das estações do ano. Com eles, é como se um artista reunisse as mãos, os pés, a cabeça e outros membros de imagens de diversos modelos, cada parte muitíssimo bem desenhada, mas sem relação com um mesmo corpo. Uma vez que elas não se adaptam umas às outras de forma alguma, o resultado seria antes um monstro que um homem.16
E também evidencia este estado de crise citando os sentimentos de Einstein: “Todas as minhas tentativas para adaptar os fundamentos teóricos da física a esse novo tipo de conhecimento fracassaram completamente. Era como se o solo debaixo de meu pés tivesse sido retirado, sem que nenhum fundamento firme, sobre o qual se pudesse construir, estivesse à vista”.17
Em crise semelhante, Wolfgang Pauli escreveu a um amigo: “No momento, a física está mais uma vez em terrível confusão. De qualquer modo, para mim é muito difícil. Gostaria de ter-me tornado um comediante de cinema ou algo do gênero e nunca ter ouvido falar de Física”. 18 Cinco meses depois, quando Heisenberg escreveu o artigo que indicaria o caminho para uma nova teoria dos Quanta, Pauli testemunha: “O tipo de Mecânica proposta por Heisenberg devolveu-me a esperança e a alegria de viver. Sem dúvida alguma, ela não proporciona a solução para a charada, mas acredito que agora é possível avançar novamente”.
As revoluções científicas são aqueles episódios não cumulativos nos quais um paradigma mais antigo é substituído inteira ou parcialmente por um novo, que é incompatível com ele, e que pode mesmo transcendê-lo.
Os dois paradigmas que competem entre si possuem um sério problema de comunicação ou linguagem, pois operam basicamente sobre postulados, hipóteses sobre a realidade e definição de conceitos elementares diferentes. Não existe concordância sobre quais problemas são importantes, qual sua natureza e qual seria sua solução. Seus critérios são diferentes; seus argumentos são paradigma-dependentes e a confrontação é evidente. Velhos termos têm que ser redefinidos, e seus significados revistos.
Um cientista da ciência comum é um “solucionador de problemas”. Ele aceita o paradigma como verdadeiro e não tem nenhum interesse em testar sua validade, inclusive investindo consideravelmente na preservação de suas hipóteses básicas. A escolha de um novo paradigma não ocorre em estágios, passo a passo, sob o fluxo da evidência e da lógica. É uma mudança súbita, semelhante a uma conversão psicológica; segue a teoria do tudo ou nada. Quando muda um paradigma, os cientistas usam novos instrumentos, olham em novos lugares, observam coisas diferentes e até percebem objetos familiares sob um ângulo completamente novo. Porém, num sentido estrito, nenhuma das velhas teorias são realmente erradas, desde que sejam aplicadas apenas aos fenômenos que podem explicar adequadamente; o erro consiste em extrapolar uma idéia para todos os campos fenomenológicos do universo. Assim, Thomas Kuhn aceita que velhas teorias podem ser salvas e mantidas corretas quando sua esfera de aplicação for devidamente definida e quando a evidência experimental justificar seu uso. Depois da mudança de paradigma, a velha teoria pode ser vista como um caso especial da nova, mas deve ser transformada e reformulada para este propósito. Deste modo a mecânica de Newton pode ser reinterpretada como um caso especial da Teoria da Relatividade de Einstein, e uma explicação pode ser oferecida para seu funcionamento dentro de seus limites de aplicabilidade. Porém, conceitos básicos como espaço, tempo e massa foram drasticamente mudados e não pode haver comparações entre eles nas duas teorias. De qualquer forma, os paradigmas devem ser vistos como modelos e não como descrições definitivas da realidade!
A aceitação de um novo paradigma raramente é fácil, pois depende inclusive da reavaliação de fatores emocionais, políticos, econômicos e administrativos de importância na sociedade vigente. Isto pode dispender mais de uma geração até que a comunidade científica aceite a nova conceituação.
Estas dificuldades de conversão foram indicadas por alguns cientistas, como a afirmação de Charles Darwin, que exemplifica bem esta questão:
Embora eu esteja plenamente convencido das perspectivas apresentadas neste volume, [….] de maneira nenhuma espero convencer naturalistas experientes, cujas mentes estão repletas de multidões de fatos catalogados por longos anos, segundo um ponto de vista diametralmente oposto ao meu [….] Mas olho com confiança para o futuro – para naturalistas jovens que surgirão e que serão capazes de enxergar os dois lados da questão com imparcialidade.19
Max Planck também é citado por Kunh: “Uma nova verdade científica triunfa não porque convença seus oponentes fazendo-os ver a luz, mas porque eles finalmente morrem, e uma nova geração cresce familiarizando-se com ela”.20
Uma vez que o novo paradigma foi aceito e assimilado, suas assertivas básicas são incorporadas aos livros didáticos. Mas pela sua natureza, tendem a não abordar certos assuntos e a negar a existência das revoluções que os produziram. A ciência é descrita como uma série de descobertas e invenções individuais que, na sua totalidade, representam o corpo moderno de conhecimentos. Nos seus relatos históricos, os livros tendem a apresentar apenas o aspecto do trabalho de cientistas individuais que possam ser vistos como contribuintes ao ponto de vista contemporâneo. Assim, quando se discute a mecânica de Newton, nunca é mencionado o papel que ele atribuía a Deus, ou o seu interesse profundo em astrologia e alquimia, tão integrados em sua filosofia. Da mesma forma, não se lê que o dualismo de Descartes entre corpo e alma implicava a existência de Deus. Não é também mencionado nos livros didáticos que grande número dos fundadores da física moderna, como Albert Einstein, Bohm, Heisenberg, Schroedinger, Bohr e Oppenheimer, não somente achavam seus trabalhos plenamente compatíveis com a visão mística do mundo, como também, de certo modo, penetravam neste domínio através de suas atividades científicas. Como os livros são rescritos, a ciência aparece novamente como sendo um empreendimento linear e cumulativo, e sua história surge como um aumento gradual de conhecimento. O campo é preparado para a prática da ciência normal, até que a acumulação de observações desafie o velho paradigma.
Motivado pela complexidade do tema exposto e inspirado pelas reações dos críticos ao seu trabalho original, Kuhn escreve um posfácio adicionando idéias à sua teoria inicial, sete anos após a publicação do seu livro. Aqui o autor resume o termo “paradigma” como sendo usado em dois sentidos diferentes:
De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc…, partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada; de outro, denota um tipo de elemento dessa constelação – as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal.21
Pelo menos filosoficamente, este segundo sentido de “paradigma” é o mais profundo dos dois. De acordo com esta concepção, uma comunidade científica é formada pelos praticantes de uma especialidade científica. Estes foram submetidos a uma iniciação profissional e a uma educação similares, numa extensão sem paralelos na maioria das outras disciplinas. Neste processo, absorveram a mesma literatura técnica e dela retiraram muitas das mesmas lições. Assim, um paradigma governa, em primeiro lugar, não um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes da ciência.
Devido às outras definições de paradigma, Kuhn sugere no seu lugar o termo “matriz disciplinar”: “disciplinar” porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; “matriz” porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada. 22
Em seus últimos trabalhos, Kuhn começou a diferenciar os constituintes e elementos mais específicos do que ele chamou originalmente pelo termo global de paradigma. Ele distinguiu, por exemplo, generalizações simbólicas (a prática de expressar certas relações fixas em equações sucintas, como f = m.a, I = V/R, E = m.c2, etc.); crenças em modelos particulares (modelo planetário do átomo, partícula ou onda de luz, modelo de gás como minúsculas bolas de bilhar de matéria movendo-se ao acaso, etc.); partilha de valores (importância da predição, testabilidade, replicabilidade, consistência lógica, plausabilidade, visuabilidade ou margem aceitável de erro); e exemplares (exemplos de soluções concretas de problemas em que princípios aceitos comumente são aplicados a várias áreas).
A maneira incisiva de Kuhn se expressar começou a instigar outros historiadores da ciência como Philipp Frank e Paul Feyerabend, o que acabou gerando o surgimento de eminentes críticos dos críticos. Feyerabend, considerado um anarquista do conhecimento, chegou a afirmar: “Adeus à razão, nada é objetivamente verdadeiro; porque para todo o enunciado, teoria, ou ponto de vista concebido como verdadeiro com boas razões, existem argumentos suscetíveis de provar que um visão alternativa é pelo menos tão boa, senão melhor”.23
Em 1975 surge a obra extraordinária de Fritjof Capra, O Tao da Física, relacionando a Física ocidental com as culturas orientais, corroborada por outros físicos como Oppenheimer, Niels Bohr e Heisenberg.
O avanço destes questionamentos resultou numa importante polêmica entre René Thom, Ilya Prigogine, Henri Atlan e Edgar Morin, em 1980 na França, publicada sob o título de A Querela do Determinismo. Na seqüência aconteceu um colóquio consagrado à auto-organização, em junho de 1981, no centro internacional de Cerisy-la-Salle, apoiado pelo Centre National da la Recherche Scientifique (CNRS), e também um colóquio internacional sobre o tema Ordem e Desordem, em setembro de 1981, na Universidade de Stanford, na Califórnia.
15 Ibid., pp. 119 e seg.
16 Ibid., p. 114.
17 Ibid., p. 115.
18 Ibid., P 115.
19 Ibid., p. 191.
20 Ibid., p. 191.
21 Ibid., pp. 218 a 220.
22 Ibid., p. 226.
23 FEYERABEND, P. Adeus à Razão. Lisboa: Edições 70. Citado por PASTERNAK, G. P. Será preciso queimar Descartes? Lisboa: Relógio D’Água, 1993, p. 17.
(Continua)